O sol lentamente ilumina a multidão apressada, os senhores e seus cigarros, seus cafés e amarguras. As calles se transformam em um grande palco onde, ao som do tango imaginário, as pessoas buscam desvendar o labirinto borginiano da cidade. Elas correm, amam e morrem ao sabor do café fumegante que enche o ar com um aroma ora calmo, ora rápido como os dedos de Piazzolla acariciando o bandoneon que anuncia outro amor, outro gosto de derrota, outro dia em Buenos Aires. Eu caminho como se soubesse aonde ir, mas na verdade estou absorto neste espetáculo, aproveitando cada segundo, cada som, cada cheiro, cada fragmento de uma vida que nunca tive. Vejo-me nos olhos dos outros, me sinto livre, e assim caminho como se soubesse quem sou. Lembro vagamente de quem fui um dia. Viajar é se entregar sem medo ao novo, redescobrir a razão de tudo. E estas ruas, estas personagens e todo o resto fazem com que o menor dos prazeres se transforme em orgias, tudo se mistura em uma dança frenética e apaixonada. Novos sons, velhos desejos. E assim caminhamos rumo a nós mesmos, com a certeza de que estamos no trajeto certo. Sorrimos apressados para a nossa existência, com medo que ela retorne o sorriso. O sol aquece o nosso ânimo, e acordamos do sonho, entorpecidos pela possibilidade de esquecer quem somos, e perdemos o fôlego e choramos lágrimas alegres, e cantamos e dançamos. Mas o horizonte traz a escuridão, e assim tentamos purificar nossa alma antes do fim, quase que desdenhando o inevitável. E então voltamos diferentes, inaptos e atordoados, rezando para que tudo seja apenas uma ilusão, um jogo de luz e sombra. E o café continua a chamar, e as medialunas continuam lindas e o olhar distante e desinteressado do garçom encontra o meu, e como que por impulso natural as engrenagens voltam a rodar , termino meu café e penso em deixar tudo para trás, quem se importa com coisas mesquinhas quando podemos encontrar afinal o sentido puro, frio e assustador que uma vida sem sentido pode nos causar. Enquanto tento me enganar e prometer em vão não viver em vão, os dias se acabam e tudo está muito rápido.E lentamente vejo minha vida escorrer pelos meus dedos e finalmente compreendo a ironia de ser o que somos.
inspiração porteña
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belo texto! inspirador. lendo este e os outros posts, não pude pensar em outra coisa senão no seguinte:
viajar nos traz uma sensação de liberdade que pode se transformar em melancolia quando voltamos pra casa e a rotina nos consome. mas a liberdade que sentimos quando estamos fora, num lugar diferente pode ser viável em casa tb. uma pequena fuga da rotina, um olhar mais apurado sobre a cidade, uma saída para um café, um museu no centro. tudo tem o seu valor, mas a tendência é deixar o que está perto de nós passar despercebido. isso foi o que concluí depois de passar um ano fora do brasil, numa europa tão sonhada. em qualquer lugar do mundo podemos cair numa rotina entediante. cabe a nós buscar o novo, todos os dias, onde quer que estejamos.
teu blog tá preeeza! parabéns!